Etnografia poética 4 – O guarda silêncios

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Joana Saraiva 

Pedi calma ao tempo quando me apaixonei por ti. Segurei o tempo na barriga, segurei na barriga as borboletas e dei o meu melhor para que ficasse só entre mim e ti o que eu estava certa ser do tamanho da lua. A missão ficava ainda mais difícil porque o tamanho das coisas não tem só palmos. Tem também tempo e esse, o tempo, tinha pressa de se fazer crescido. Somadas as duas medidas, a missão parecia impossível. Quando me apaixonei por ti, perdi rédeas da razão. Levou a razão o melhor de mim e a mim só me sobraram borboletas.

Apaixonar-me por ti foi sol que me aconteceu. Pouco ou nada sei sobre o que gostas, sobre o que não gostas, sobre o que imaginas que virás um dia a gostar. Sobre isso não sei nada mas brincar a adivinhar, tornou-se ar para mim. Invento que és perfeita. Que os teus olhos me escolhem sempre a mim, que escreves o meu nome no teu caderno vezes infinitas, que nem tão pouco sabes o meu nome mas perdes-te a tentar adivinhá-lo e é exactamente isso que te torna perfeita.

Gostar de ti assim, sem corpo e sem calma, dá-me paz. Gostar de ti assim, em imaginação, é do tamanho que eu quiser e é isso que me dá paz. Não saber se és de outras luas, se os teus dedos se entrelaçam com outros que não os meus ou se não queres mesmo nem saber como me chamo, não me adoça a imaginação. Atropela-a, em vez. Fá-la embrulhar-se no que não sei desembrulhar em mim, no que é escuro e que então não tem saída ou pelo menos, eu ainda não dei com ela. Assim ficas lado a lado com o sol. Assim és sol para mim e assim, apago-te só quando eu quiser. 

Um dia destes conhecemo-nos. Agarro finalmente na coragem e chego perto de ti para que me oiças a voz. Sei a tua de cor e na minha imaginação – porque fiz contas aos “obrigada” que te ouvi dizer a mim e que te ouvi dizer a outros – falas como quem não tem dúvidas. Se as tens, e tomara eu ter a sorte de um dia as saber, não fazes disso um parágrafo teu. Escreves-te em maiúsculas e não deixas espaços em branco. Não deixas hipóteses de espaços para os outros te adivinharem e é nesta linha que te amo de novo: a mim, deixaste-me o teu caderno em branco. Enchi-o do meu nome e do teu, enchi-o de futuro e de frases motivadoras que li em pacotes de açúcar. A mim, que serei também sol para ti embora ainda não o saibas, deste-me o que ainda não desembrulhaste em ti.

Desmanchaste- te em minúsculas e descansaste os teus ombros nos meus: não te preocupes, lua minha, assim o quis. Deixa-te descansar, lua minha, prometo tomar conta das tuas sombras. Prometo amar-te quando és assim, lua, e sobre essa tua face prometo segredo de estado. 

Puseste-te nervosa quando te viram desprotegida. Sabias o texto, sabias a história, mas por qualquer razão que demoraste a entender, tardaste na tua deixa. Desta vez, por qualquer razão que nem sequer tem de ser definição tua, não foste perfeitamente eficaz. Vi-te desperfeita e foi aí que te amei pela primeira vez. Vi-te em descontrolo de ti. Vi-te a engolires o coração e a não saberes aguentá- lo no peito de tão alto que te batia. Vi o quão alto te chega o coração, te chega a alma, e foi aí que me apaixonei por ti. Vi o quanto me viste quando, sem te dizer nada, te embalei o balanço da alma. Emprestaste-ma sem receios e juro a pés juntos que não espreitei mais do que devia. Quando te puseste assim, em descontrolo de ti, quiseste só silêncio: sorte a minha que o silêncio me é virtude. Quando te encontrei – tu, longe da próxima fala e eu próximo de me fazer valente – respiraste com o peito todo. Desprendeste-o de ti – só desta vez, deste-lhe ordem de liberdade – e em sequência inevitável desprendeste-te do teu corpo. As tuas mãos quiseram o chão, a tua nuca quis as tuas mãos e as minhas mãos quiseram as tuas. Cobri-te o corpo com o meu. Dobrei o tamanho dos braços para garantir que te segurava toda. Prometi-te, no silêncio que querias, que tomaria conta dos teus desbalanços. Que os queria também para mim e que as tuas vertigens te aproximam do chão, te aproximam de ser gente, te aproximam ainda mais de mim.

Quando me viste os olhos, vi-te a alma. Tu seguravas os olhos carregados e eu redescobria a minha alma plena. Quando retomaste controlo de ti, quando reaprendeste o desenho da tua boca, das tuas mãos e da tua nuca, disseste-me “obrigada”. Dobraste o tamanho dos teus braços, a vontade dos teus abraços e seguraste-me todo. Porque sou bom de manter silêncio não te disse nada. Pousei o queixo no teu ombro e respirei com o peito todo tal como, sem sequer saberes, me tinhas ensinado a fazer. Larguei o corpo de mim, entreguei-to e redescobri-me em descontrolo.

Foste embora depois de me abraçares todo. Não voltámos a cruzar vidas, depois de me abraçares todo, e depois de voltares para os teus afazeres frente a todos os que te sabem só em sol. Agora vejo-te quando fico em casa, à noite, a ver-te seres quem não és e a fazer figas para que seja rápido o regresso da minha “personagem sem nome” ao café da tua grandiosa Alice.

Foram-se as rédeas da razão quando me apaixonei por ti. Apaixonei-me quando te vi assim, desbalançada. Deste-me isso a mim e prometo-te eu que só comigo ficará: as tuas sombras só comigo e eu só com as borboletas. 

Para aquele que vê com o coração.

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